Mentes brilhantes
Quais métodos os psicólogos contemporâneos usam para identificar crianças superdotadas? Como ocorre o desenvolvimento emocional desses pequenos? Veja o que existe de novo nesse campo e o que dizem os pesquisadores sobre os famosos testes de QI
Por Roberta de Medeiros
Revista Psique, Edição 50
No supermercado, Tânia fala para sua mãe parar de colocar mercadorias no carrinho, pois já havia atingido o limite de R$ 50,00, tudo o que tinham para gastar. Com apenas 4 anos, a menina havia calculado o total gasto até aquele momento! Frequentadora de uma creche de baixa renda, ela aprendeu a contar e somar sozinha. Paulo tem 5 anos, é um menino alegre e comunicativo. Ele lê, escreve, canta e desenha, além de ter uma memória prodigiosa. Seus desenhos são excelentes para um garoto da sua idade. Pequenina e tímida, Vitória aprendeu a ler com 2 anos, quando passou a receber também aulas de inglês. Hoje, com 4 anos, ela já se debruça na leitura da mitologia grega. Os três são superdotados. Mas como descobrir quando uma criança é superdotada (ou portadora de altas habilidades como preferem dizer os especialistas)? Isso depende do conceito que se tem de superdotação. Até pouco tempo, a ideia que se tinha do superdotado remetia à imagem do garoto franzino, que era o primeiro da classe, craque em Química, Matemática ou Física.
Hoje a noção mais aceita é de que os superdotados são aquelas pessoas que têm os três traços: habilidade acima da média, criatividade e envolvimento com a tarefa. As habilidades podem ser em diversas áreas do conhecimento, como dança, construção civil, filosofia, desenho, escultura, esportes, literatura, ciências, trabalhos manuais, fotografia... ou habilidades gerais como memória, processamento de informação, vocabulário. "O envolvimento é a dedicação que o sujeito deposita em sua área de interesse, perseverança, dedicação, foco e motivação. A criatividade está ligada ao pensamento inovador, à flexibilidade e novas formas de perceber as mesmas coisas", explica a psicóloga Nara Joyce Wellausen Vieira, da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para Portadores de Altas Habilidades.
O mito de que a inteligência era uma coisa única, compacta, ruiu há muito tempo, graças aos estudos do psicólogo americano Howard Gardner, da Universidade Harvard, que mapeou as inteligências antes tidas apenas como aptidões. Ele sustenta que há oito tipos diferentes de inteligência e não apenas aquele bloco de saber lógico que se julgava no passado ser a mais sublime expressão do intelecto. São elas a verbal, a musical, a matemática, a espacial, a corporal, a naturalista (a capacidade de compreender os fenômenos naturais), a intrapessoal (o autoconhecimento) e a interpessoal (a habilidade de interpretar as intenções alheias e exercer a liderança). Se Gardner estiver certo, é possível que existam mais talentos do que poderíamos supor. Ao invés dos 1% a 3% de pessoas superdotadas, proposto pela Organização Mundial de Saúde, o índice pode saltar para 15%, levando em conta as habilidades artísticas, criativas, de liderança ou de esportes. Outro pesquisador que deu um passo adiante na compreensão do que se considera um comportamento inteligente foi o psicólogo americano Joseph Renzulli, do Centro Nacional de Pesquisa sobre o Superdotado e Talentoso da Universidade de Connecticut. Ao afirmar que o superdotado era uma mistura de talento, criatividade e dedicação obstinada, ele subverteu a visão antiga do Ocidente sobre os pequenos iluminados. "Tanto Gardner quanto Renzulli entendem que a inteligência não é um conceito fechado. Eles acreditam que as pessoas superdotadas têm diferentes perfis, que nem sempre condizem com a imagem do superdotado padrão, que é intelectual destacado", ressalta Nara.
Testes de QI - Durante o século XX, superdotado era alguém capaz de decorar conteúdos enciclopédicos ou resolver enunciados complexos. Os esforços para avaliar a inteligência a partir de testes ganharam fôlego com as ideias do psicólogo francês Alfred Binet, no início do século passado. Foi quando as autoridades francesas pediram que Binet criasse um instrumento capaz de prever quais crianças teriam sucesso nos liceus parisienses. Então, ele criou uma escala de inteligência, com 30 tarefas mentais graduadas em função da idade. Esse instrumento era capaz de mostrar se o desenvolvimento da criança era igual ao das colegas, atrasado ou adiantado. Daí o teste quociente de inteligência, o QI! E o felizardo que estourasse em pontos era inteligentíssimo. Mas não é bem assim. Eles foram logo considerados uma armadilha. Seriam tendenciosos, porque exigem, por exemplo, a familiaridade com as expressões e o vocabulário embutidos nas questões. Outro ponto criticado por ela é que os testes não avaliam outros elementos como liderança, habilidade para interagir, imaginação e determinação. E tem mais: esses testes avaliam apenas respostas certas dentro de um intervalo de tempo, são padronizadas. "O que fazer, então, quando as respostas são originais?", questiona Nara. E o mais perigoso em tudo isso: "Os resultados desses testes de inteligência são supervalorizados e aceitos com muita facilidade, rotulando algumas crianças", critica.
Avessos aos testes de QI, hoje os especialistas recorrem a outro arsenal para detectar a inteligência, como check-list, autoavaliação, observação, participação de professores e testes. O primeiro passo é levantar um histórico da criança a partir do relato dos pais. A criança passa por um extenso período de observação em seu ambiente de aprendizagem na escola ou em uma sala de recursos. O profissional coleta dados sobre seus interesses, sua forma preferida de aprender e sua produção. A criatividade também é avaliada. "Podem ser aplicadas provas acadêmicas de uma série acima. Isso permitirá ver as estratégias que ela usa para elaborar um problema que ela ainda não conhece formalmente. Se a área de talento for música ou artes plásticas, por exemplo, um expert deverá avaliar o caso", diz Maria Clara Sodré, professora da PUCRJ e autora de Educação de Superdotados: Teoria e Prática, da Editora Pedagógica e Universitária.
Para ela, o talento precoce é uma pista valiosa na hora de identificar o superdotado, já que o talento dele tende a desabrochar muito cedo. Em geral, os pequenos desenvolvem espontaneamente a sua habilidade: são crianças que aprendem a ler sozinhas ou que desmontam o computador sem causar estragos. Na mais tenra idade, mostram familiaridade com instrumentos musicais, têm um vocabulário elaborado, raciocínio ágil ou memória fora do comum. "A precocidade faz com que a criança seja capaz de fazer coisas típicas de crianças mais velhas e se desenvolver mais rápido e ter um talento superior", explica Maria Clara. Como Gardner, ela acredita que a inteligência é uma mistura de dois ingredientes: a bagagem genética e a capacidade da pessoa conquistar esses talentos ao longo da vida. "Existe uma inteligência herdada que poderá ou não ser desenvolvida. Se a criança não recebeu essa herança, ela terá dificuldade em aprimorá-la. Por outro lado, se ela nasce com alguma desenvoltura e não tem oportunidade de desenvolvê-la, não terá muito potencial", argumenta.
Mãe de três filhos talentosos, a psicóloga Ângela Virgolim, professora da UnB (Universidade de Brasília), também não vê com bons olhos o uso dos testes, embora admita que eles são úteis para avaliar uma criança com notas baixas na escola, por exemplo, por causa de desmotivação ou problemas emocionais. "As pessoas nos procuram para fazer um teste de QI ou para 'diagnosticar' um filho que pode ser ou não superdotado. Mas temos que fugir destas armadilhas. O importante, tanto para a escola, quanto para a família, não é classificar ou rotular, e sim criar formas mais adequadas da criança ou do jovem desenvolver seu potencial", completa Ângela, que estudou com a equipe de Renzulli durante a defesa do seu doutorado pela Universidade de Connecticut. Não há consenso entre os especialistas. O fato é que a ciência ainda não encontrou uma fórmula para medir com precisão quem é superdotado. "Se o conceito de inteligência se basear numa noção estática, será usado um ponto de corte nos resultados do teste para selecionar quem deve entrar no programa e quem deve ficar de fora. Renzulli, por exemplo, acredita que a superdotação poderá aparecer em um momento e desaparecer em outro, fruto do contexto em que a criança vivencia. "Assim, ela precisa ser sempre avaliada para ver se o programa está realmente desenvolvendo seu potencial", diz Ângela.
terça-feira, 13 de abril de 2010
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